A decisão do Tribunal Recursos relativa ao Fundo dos Veteranos

Nota Explicativa da Presidência da República, 19 de Dezembro de 2022

Tetun English

A 13 de Dezembro de 2022, o Tribunal de Recurso timorense proferiu um acórdão referente ao pedido de revisão abstrata da constitucionalidade apresentado pelo Presidente José Ramos-Horta relativamente à validade do Fundo dos Veteranos criado pelo orçamento retificativo de 2022. No dia seguinte, o Tribunal proferiu uma segunda decisão relativa a uma revisão preventiva da constitucionalidade apresentada pelo Presidente relativamente à afetação para o Fundo no Orçamento Geral do Estado de 2023. Os dois casos cobrem as mesmas questões e as decisões são idênticas, com a decisão sobre a revisão abstrata a fornecer uma extensa fundamentação dos pareceres e conclusões do Tribunal.

O raciocínio do Tribunal é importante e constitui mais uma prova da crescente confiança e perspicácia dos juízes. O Presidente da República felicita o Tribunal o Tribunal pelo seu raciocínio e pelo seu compromisso com a Constituição e o povo de Timor-Leste.

O princípio da Proporcionalidade

O Tribunal afirmou que cada decisão do Estado, incluindo o Orçamento, precisa de ser vista à luz do princípio da proporcionalidade. e das palavras claras da Constituição. O Tribunal traça a história do princípio da proporcionalidade desde a Grécia Antiga, dos textos de Platão e Aristóteles até à jurisprudência contemporânea e afirma isso mesmo:

Nos termos do n.º 1 do artigo 1.º da Constituição da República, “a República Democrática de Timor-Leste é um Estado de direito democrático”. O princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso, encontra-se ínsito no conceito político-jurídico de Estado de direito, integra o elenco dos subprincípios concretizadores do princípio do Estado de direito, pertence à essência do Estado de direito. Ele é presentemente visto como um “princípio universal no âmbito de vigência das Constituições dos Estados Democráticos”. Importa recordar que “o justo é o proporcional, o injusto é o que viola a proporção”.

O Tribunal reconhece que o princípio da proporcionalidade é um princípio geral de direito, constitucionalmente consagrado, que exige que os atos das autoridades públicas e, em certa medida, das entidades privadas, devem ser comprovadamente adequados e necessários para atingir os fins legítimos e concretos de cada um desses atos. Considerou ainda que o Governo e o Parlamento devem sempre demonstrar uma ligação proporcional ou adequada entre os meios que utilizam para alcançar um determinado resultado. O Governo e o Parlamento não podem agir sem esta ligação. Se o fizerem, pode achar que as suas declinações são consideradas legal ou constitucionalmente inválidas.

O princípio da proporcionalidade é composto por três subprincípios. Em primeiro lugar, uma medida legislativa ou administrativa utilizada deve ser adequada ou apropriada para alcançar os objetivos em questão. Em segundo lugar, a medida adotada deve provar ser a menos onerosa ou restritiva disponível de todas as medidas possíveis para atingir o objetivo. E terceiro, o equilíbrio ou ponderação, que exige uma análise da proporcionalidade entre os custos e benefícios resultantes da adoção da medida.

Estes são pontos importantes que o Parlamento, o Governo, a Administração Pública e os cidadãos devem ter sempre em mente. As instituições públicas não podem agir simplesmente com base nos seus pontos de vista e desejos subjetivos. Não podem agir deliberadamente a nulo (arbiru). Devem sempre demonstrar a legitimidade do que fazem por referência ao princípio da proporcionalidade. O Governo e o Parlamento têm uma grande liberdade de ação, mas, a vontade do Tribunal intervém quando a medida em questão é manifestamente excessiva. O Tribunal deve sempre procurar encontrar um equilíbrio e um resultado justo. No caso do Fundo dos Veteranos, o Tribunal considerou que a lei feita pelo Parlamento era manifestamente excessiva e, portanto, violava o princípio da proporcionalidade na raiz de um Estado democrático.

Proporcionalidade e o Fundo para os Veteranos.

Ao aplicar o princípio da proporcionalidade ao Fundo dos Veteranos, o Tribunal declarou que o Parlamento Nacional descreveu o funcionamento do fundo e o seu objetivo de uma forma excessivamente vaga e imprecisa. O Parlamento, disse o Tribunal, não forneceu qualquer justificação relativamente aos problemas concretos que os veteranos enfrentam nas áreas de apoio social, educação, saúde, emprego, acesso ao crédito e atividades geradoras de rendimentos. Também não forneceu qualquer explicação sobre como estas dificuldades não poderiam ser resolvidas de outras formas, como o apoio dos veteranos existente era insuficiente, ou quais as (possíveis) vantagens futuras do Fundo. É importante notar que o Parlamento não forneceu qualquer informação sobre qual poderia ser o (eventual) benefício, mesmo que indireto, para o resto da comunidade timorense. O Tribunal observou também que os termos vagos da lei significavam que era possível para qualquer tipo de programa sem quaisquer limites ou fronteiras, não existem limites, fronteiras, suposições ou objetivos; tudo é muito indefinido. Simplesmente o valor alocado ao Fundo: $1.000.000.000 (mil milhões de dólares).

O Tribunal observou que a atribuição de financiamento aos veteranos que representam um máximo de 2% da população, em termos relativos, quando comparado com o Orçamento de Estado de 2022, corresponde a:

  • quase metade da receita global (2.178.942.591) e da despesa global (2.178.328.791);
  • cerca de 11 vezes da despesa global consolidada da Região Administrativa Especial de Oe-Cusse Ambeno (89.565.344);
  • cerca de 19 vezes da receita tributária com impostos diretos (51.757.975);
  • cerca de 14 vezes da receita tributária com impostos indiretos (69.801.709);
  • cerca de 125 vezes da despesa do Ministério da Justiça com “acesso à justiça” (7.992.325);
  • cerca de 23 vezes da despesa do Ministério da Saúde com “saúde” (43.631.607);
  • cerca de 30 vezes da despesa do Ministério das Obras Públicas com “estradas e pontes” (32.873.534);
  • cerca de 61 vezes da despesa do Ministério da Defesa com “defesa nacional” (16.296.389);
  • cerca de 2.037 vezes da despesa do Instituto Nacional de Ciências e Tecnologia (490.824);
  • cerca de duas vezes e meia da receita da Segurança Social (387.998.000);
  • cerca de 13 vezes da despesa do Ministério da Educação, Juventude e Desporto com “educação e formação” (75.926.640);
  • cerca de quatro vezes da despesa da administração central com “salários e vencimentos” (245.437.130).
  • Cerca de metade do nosso PIB de 2021 (1,96 mil milhões de dólares”), sendo que o rendimento per capita desse ano em Timor-Leste foi de 1.457 dólares”.

O Tribunal concluiu que:

Ora, o princípio da proporcionalidade diz-nos que na avaliação jurídico-constitucional de um preceito devemos considerar o conjunto dos interesses em Jogo; que devemos ponderar se os benefícios por ele tidos em vista são superiores às desvantagens que dele porventura decorrem.

Diz o Parlamento Nacional que “a criação do Fundo dos Combatentes da Libertação Nacional (…) não atribui por si qualquer direito acrescido aos Combatentes da Libertação. Com o devido respeito, não se pode acompanhar tal afirmação.

Naturalmente que os beneficiários da criação do Fundo são os Combatentes da Libertação Nacional. Se não são eles, quem é então? E a criação do Fundo faz, pelo menos, nascer a expectativa jurídica de os Combatentes da Libertação Nacional acederem, numa situação vantajosa, ao financiamento dos programas de apoio que lhes são destinados. E a “expectativa jurídica é já uma posição de expectação à qual o Direito confere proteção, designadamente através de permissões atribuídas ao sujeito expectante, em ordem à defesa da probabilidade de efetuação do seu desejo (ou seja do seu direito a)…

E temos de ter ainda presente que, como refere o Governo”, no NOSSO ordenamento jurídico os Combatentes da Libertação Nacional já beneficiam do Estatuto dos Combatentes da Libertação Nacional (Lei 3/2006, de 12 de abril), do regime de Pensões dos Combatentes e Mártires da Libertação Nacional (Decreto-Lei 15/2008, de 4 de junho), da Prestação Pecuniária Única para Combatentes e Familiares dos Mártires da Libertação Nacional (Decreto-Lei 5/2012, de 15 de fevereiro) e do Regime de Atribuição de Bolsas de Estudo aos Filhos dos Combatentes e Mártires da Libertação Nacional (Decreto-Lei 8/2009, de 15janeiro).

Sucede que o Fundo dos Combatentes da Libertação Nacional não vem substituir, no imediato ou gradualmente, este conjunto de direitos; aquele acresce a estes. Com a criação do Fundo dos Combatentes da Libertação Nacional há um reforço dos direitos destes. Para além disso, como é óbvio, os mil milhões de dólares que forem canalizados para o Fundo não serão utilizados para responder a necessidades da população em geral. O conjunto de diplomas que conferem direitos aos Combatentes da Libertação Nacional, que acima citámos, materializa o merecido reconhecimento do país aos seus “veteranos”, o qual lhes é devido, para além do mais, em obediência ao comando constitucional do citado artigo 11.º, e evidencia que nesta matéria já muito se fez.

À luz de tudo o que acima se disse, ponderando os custos-benefícios para os Combatentes da Libertação Nacional e para todos os restantes timorenses, com equilíbrio, racionalidade e razoabilidade, temos de concluir que a criação do Fundo dos Combatentes da Libertação Nacional, nos precisos termos em que o artigo 4.º da Lei 6 /2022 o faz, ofende o princípio da proporcionalidade, ínsito no artigo 1.º da Constituição da República.

A utilização justa e igualitária dos recursos naturais.

O artigo 139(1) da Constituição da República prevê que Os recursos do solo, do subsolo, das águas territoriais, da plataforma continental e da zona económica exclusiva, que são vitais para a economia, são propriedade do Estado e devem ser utilizados de uma forma justa e igualitária, de acordo com o interesse nacional”.

O Tribunal afirmou que o Artigo 139 significa que os recursos naturais da nação pertencem a todos e que é a todos os cidadãos que os benefícios deles devem chegar; os benefícios deles resultantes devem ser equitativamente partilhados por todos os timorenses. O Parlamento, portanto, tem o claro propósito e dever de assegurar que este bem comum não é utilizado por uns em detrimento de outros. O Parlamento deve ter sempre em mente o interesse nacional, para que os benefícios dos recursos naturais da nação e do Fundo Petrolífero sejam usufruídos, direta ou indiretamente, por toda a sociedade.

O Tribunal considerou que o Fundo dos Veteranos foi criado com capital do Fundo Petrolífero e, portanto, com benefícios provenientes, mesmo que indiretamente, dos recursos referidos no artigo 139º da Constituição. Pelas razões expostas na sua decisão, o Tribunal considerou que o montante de $1.000.000.000 para o Fundo dos Veteranos não se traduzia de forma alguma na utilização justa e igualitária, uma vez que era um montante demasiado elevado para o benefício de tão poucas pessoas. Assim, declararam que o Artigo 4 da Lei 6/2022, de 18 de Maio de 2002, também violava o Artigo 139 parágrafo 1 da Constituição da República.

Sustentabilidade Inclusiva

A decisão do Tribunal dá mais apoio à política do Presidente delineada na sua alocução ao Parlamento Nacional em 15 de Setembro de 2022. Nesse discurso, o Presidente expôs a sua visão de Sustentabilidade Inclusiva para a nação:

Os objetivos do Estado estabelecidos na Constituição incluem coisas como a construção de uma sociedade baseada na justiça social, estabelecendo o bem-estar material e espiritual dos cidadãos, protegendo o ambiente e preservando os nossos recursos naturais. Estes objetivos incluem a promoção do desenvolvimento harmonioso e integrado dos setores e regiões, e, o que é importante, assegurar a distribuição justa do produto nacional.

O que devemos retirar daqui é que no nosso sistema constitucional a inclusão significa que existe um dever constitucional de assegurar a justiça social, o bem-estar material dos cidadãos e a distribuição justa do produto nacional. A inclusão significa que os nossos recursos naturais e o produto desses recursos, tais como o Fundo Petrolífero e a nossa riqueza nacional comum, devem ser constitucionalmente distribuídos equitativamente e utilizados de forma justa e equitativa.

A Sustentabilidade Inclusiva significa que o nosso sistema económico, a utilização do nosso produto nacional e a utilização dos nossos recursos naturais deve ser feita de forma sustentável, tanto agora como no futuro, para as gerações vindouras. Isto não significa que o Governo não possa gastar e utilizar, por exemplo, o Fundo Petrolífero, mas que deve fazê-lo de forma justa para benefício de todos, com as necessidades das gerações futuras consideradas a par do presente.

Isto significa que temos de olhar para além do nosso interesse pessoal e político partidário para assegurar o bem-estar material de todos os cidadãos da nação, protegendo ao mesmo tempo os nossos abundantes recursos naturais e o nosso ambiente.

Dá substância ao direito primordial e fundamental à igualdade perante a lei, no contexto da afetação dos recursos financeiros e naturais da nação e do seu desenvolvimento económico sustentável, na distribuição justa do produto nacional e na utilização justa e equitativa dos recursos naturais. Implica o dever e a obrigação de assegurar e salvaguardar o desenvolvimento sustentável da economia, do ambiente, e da nação. Implica o dever e a obrigação de assegurar e salvaguardar o desenvolvimento inclusivo e sustentável do nosso maior património, o nosso povo.

Da perspetiva da minha Presidência, já comecei a delinear e a defender o princípio do Desenvolvimento Sustentável Inclusivo. A sua substância, por exemplo, inclui o nosso dever coletivo como órgãos do poder e soberania do Estado de planear e construir uma política social e económica inclusiva. Inclui o nosso dever coletivo de criar emprego para todos no nosso próprio país, de revitalizar e construir o nosso setor agrícola para garantir a nutrição e segurança alimentar e de construir a produção local de alimentos, embalagem, sistemas de distribuição e redes como base para as indústrias transformadoras locais.

Para alcançar o Desenvolvimento Sustentável Inclusivo temos de trabalhar em conjunto…”

FIM