J. Ramos-Horta
Hoje decidi marcar a data para as eleições de 2023 para o Parlamento Nacional. Penso que é evidente que o povo timorense espera que as eleições se realizem de acordo com a Constituição e o seu agendamento regular. É evidente que é do interesse da nação e do nosso futuro que as eleições se realizem o mais rapidamente possível. Chegou a altura de o povo ter a oportunidade de expressar a sua vontade democrática e de moldar os próximos cinco anos e seguintes, do nosso desenvolvimento nacional e social.
Relativamente a qualquer instabilidade política passada, gostaria apenas de fazer uma observação. As boas práticas constitucionais e a legalidade não se devem basear apenas em interpretações legais que mudam de acordo com os interesses particulares daqueles que podem deter o poder num ou outro momento. A boa-fé, a integridade e a ética constituem igualmente uma parte importante de qualquer sistema constitucional. Por vezes, as pessoas podem ter a ideia de que os partidos políticos e os seus dirigentes estão dispostos a fazer tudo para se manterem no poder, de que estão dispostos a adotar interpretações jurídicas contrárias às que detinham noutras alturas, e noutras circunstâncias a confiança do povo no nosso sistema jurídico e constitucional fica minada. Penso que é justo dizer que é raro o político que consegue erguer a cabeça e dizer que, nos últimos cinco anos, sempre colocou os interesses do país à frente dos seus interesses partidários ou pessoais.
Tudo o que posso fazer como Presidente é esperar que, durante o próximo período eleitoral e durante a próxima legislatura, os políticos de todos os partidos comecem a aprender a distinguir entre o interesse partidário e nacional. É agora, sem dúvida, o momento de os nossos políticos e partidos políticos nacionais agirem com a integridade e a maturidade ética que o povo merece. Os próximos cinco anos marcam um período crucial para o futuro da nossa nação. A forma como as nossas ações e políticas avançarem pode, no final, ser o tudo ou nada para o futuro da nação. É a este respeito que hoje quero dedicar algum tempo, a falar e a pensar sobre os partidos políticos e o debate das políticas públicas. Gostaria de concluir hoje, falando sobre as preocupações que tenho em relação ao Estado de direito, às várias forças de aplicação da lei e aos serviços de informação e sobre os perigos que daí advém para o nosso país.
Política e políticas
O modelo de democracia liberal adversária e de base partidária que Timor herdou do Ocidente é dito basear-se numa competição entre um Governo eleito e uma oposição. Este sistema de Governo competitivo destina-se a proporcionar, aquilo a que podemos chamar, uma competição de ideias, no que concerne, de um ou outro modo, às políticas e opções mais adequadas para o Governo de uma nação. Esta competição é julgada com base em eleições competitivas periódicas. Mas não é o único modelo e pode ser que nos próximos anos possamos começar a questionar a sua eficácia.
Temos de perguntar até que ponto as ideias e as políticas são realmente discutidas no nosso debate político. Quanto do debate é realmente apenas sobre as personalidades dos nossos vários líderes?
Hoje quero levantar algumas questões e ideias. Este não é um programa fixo da minha parte, mas uma tentativa de que todos comecemos a pensar no estado atual da nossa democracia, nos nossos partidos políticos e nos melhores interesses da nação. Nos próximos 5 anos, Timor-Leste precisa de desenvolver uma visão do tipo de política que quer para o futuro. Precisamos de criar as políticas necessárias para desenvolver e manter a nação unida, com uma visão comum, inclusiva e sustentável.
Há muitas perguntas a fazer sobre o estado atual do nosso sistema político e sobre o futuro da nossa nação. Pela minha parte, o que é importante é que consigamos os melhores resultados para o nosso povo, de uma forma fundamentada e informada, e que preservemos os nossos princípios fundamentais – um compromisso com os direitos humanos, o Estado de direito, um compromisso com a inclusão social e económica e um compromisso com a nossa política externa independente.
Que políticas promovem hoje os partidos políticos em Timor?
Existe uma perceção entre muitos no nosso povo, que contém um elemento da verdade, de que os partidos políticos em Timor são simplesmente veículos para os membros do partido conseguirem emprego e obterem cargos de poder. Para além disso, muitos partidos não têm objetivos ou políticas verdadeiramente desenvolvidas, e nem sempre, quando ganham poder, implementam as suas próprias políticas.
Os objetivos do partido são muitas vezes o que se chamam em inglês de “motherhood statements”, banalidades vagas. São declarações tão amplas que ninguém pode realmente discordar delas. Um exemplo pode ser a doutrina de um partido que defende a “paz, uma boa vida e justiça” (Domin, Moris Diak no Justisa). Este partido em particular afirma que respeita os heróis da resistência, contribui para a paz, respeita a cultura timorense, os direitos humanos e a segurança do povo e da nação. Outros partidos simplesmente afirmam que apoiam, por exemplo, a democracia e os mercados livres. Mas falta frequentemente o pormenor do que tudo isto significa e de como pode ser implementado ou alcançado.
O Plano Estratégico de Desenvolvimento 2015-2030 é, em grande medida, um motherhood statement. É um conjunto de objetivos com que todos podemos facilmente concordar. Mas o que está ausente do PED e das discussões sobre o mesmo são a política pormenorizada de como podemos alcançar estes objetivos e como a política pode ser implementada.
Ao longo dos anos, vimos que, uma vez que um partido político alcança o poder, acaba apenas por seguir a liderança de outros lugares e implementar políticas desenvolvidas por outros. Um exemplo disso pode ser a recente Lei dos Direitos de Autor. A lei não contém artigos que protejam o nosso património cultural, incluindo os produtores de tais e outras obras culturais. Tanto quanto sei, os deputados foram incorretamente aconselhados de que estas questões não podiam ser incluídas na lei. Os sistemas jurídicos de outras nações conseguiram incluir e lidar com questões semelhantes com sucesso. É certo que a proteção de coisas como o tais é uma das principais questões de propriedade intelectual que os nossos povos enfrentam e, como tal, as nossas leis devem tratar destes problemas. No entanto, parece que o objetivo da elaboração da lei foi apenas satisfazer as obrigações de Timor perante a OMC sem ter em conta as nossas próprias preocupações internas. Não faço críticas ao Parlamento em relação a esta questão, mas é um exemplo de como a nossa lei e a elaboração de políticas funcionam, por vezes, de uma forma que não explica as realidades da nossa nação e do seu povo.
Noutros casos, organizações internacionais, ONG e os nossos governos gastam centenas de milhares de dólares em consultores e relatórios. Mas uma vez escritos, mesmo que sejam adotados, estes relatórios, políticas, MOUs e leis são muitas vezes deixados na gaveta, e apenas são tirados para efeitos de monitorização e avaliação, ou para demonstrar que o titular do poder satisfez os doadores ou obrigações internacionais. A situação pode ser como as antigas bandeiras coloniais guardadas numa Uma Lulik, só trazidas para mostrar poder e prestígio. Se a política ou a lei forem efetivamente implementadas ou eficazes, então isso é algo completamente diferente. Parte do problema aqui pode ser que nem sempre temos a capacidade de compreender, desenvolver e debater os detalhes mais finos e necessariamente inovadores da política. Ou que as pessoas são preguiçosas ou simplesmente não se interessam por essas coisas. Pode ser que esta seja uma das razões pelas quais os nossos debates políticos, na ausência de programas distintos e desenvolvidos, em vez de lidar com a política, tendem a entrar em debates sobre indivíduos, os seus legados históricos, ou acusações de corrupção, por exemplo.
O modelo de Singapura do governo tecnocrático.
Desde a independência, muitas pessoas apontaram Singapura como um modelo para o desenvolvimento de Timor. Apontam para os grandes edifícios, estradas e centros comerciais, mas esquecem-se muitas vezes das razões históricas, geográficas e comerciais por que Singapura se desenvolveu da forma como o fez. Uma coisa que Timor pode aprender com Singapura enquanto tentamos desenvolver o nosso futuro é o modelo de governo de Singapura. O Partido de Ação Popular (PAP), que governa Singapura desde 1959, implementa o que é descrito como uma forma prática tecnocrática de governação e de tomada de decisões políticas. Simplificando: o que funciona é mantido. O que não funciona é descartado. Singapura jogou com o rígido modelo parlamentar da democracia e, por sua vez, inventou mecanismos em que, por exemplo, as pessoas são trazidas para o Parlamento, mesmo que não tenham sido eleitas. Os “melhores perdedores” num sentido tecnocrático, bem como as pessoas nomeadas por vários grupos de interesses sectoriais, são trazidos para o Governo e fornecem conhecimentos e vozes alternativas. Uma das características do Partido de Ação Popular é que está continuamente preocupado em encontrar pessoas de alto calibre – incluindo aquelas que podem ter sérias divergências com o Partido – e trazê-las para as suas fileiras.
Outra característica, muitas vezes negligenciada, é o que tem sido descrito como a resposta às opiniões das pessoas e às suas preocupações do dia-a-dia. O PAP sempre sublinhou estar sintonizado com as necessidades, desejos e aspirações do povo. As opiniões das pessoas no terreno devem ser sempre transmitidas para cima e ser ouvidas e discutidas pela liderança. O PAP dá grande ênfase à construção de relações com as pessoas, certificando-se de que estão à sua disposição e ouvindo as suas preocupações. Realizam-se exercícios periódicos de consulta nacional ou “conversas” de dois em dois anos. O PAP tem tentado ser inclusivo e, de facto, aceitar opiniões divergentes. Aos olhos de alguns dos seus principais líderes, o PAP não é apenas um partido político; é a única instituição nacional capaz de levar Singapura para um futuro desafiante. Os líderes do governo referem-se a um “reservatório de confiança” entre o Governo e o povo.
A questão é que a política partidária em Singapura não está na concorrência, mas sim em trazer as pessoas melhores e mais capazes para as fileiras do Parlamento e do Governo. O pragmatismo é o conceito-chave que define, onde as políticas se justificam com base na produção de resultados concretos e tangíveis. Espera-se que os funcionários públicos sejam tecnicamente pensadores a longo prazo e com uma veia utilitária profunda. Em Singapura, ao contrário de Timor, os principais funcionários públicos a todos os níveis não são nomeados e removidos cada vez que um novo Governo toma o poder. Ao pensarmos no modelo e na sua relevância para Timor, temos de nos perguntar: como é que o próprio governo tecnocrático pode ser informado e governado por princípios e controlo democráticos adequados e pertinentes, para que não se torne simplesmente uma ditadura burocrática?
O desafio para Singapura pode ser a forma de se manter sensível e de manter mecanismos eficazes de inclusão com os seus cidadãos e, ao mesmo tempo, manter o seu pragmatismo tecnocrático. Não há dúvida de que podemos aprender muito com os resultados de Singapura. O sucesso de Singapura veio do seu foco na regra dos especialistas, no talento meritocrático e no pensamento a longo prazo.
Em Timor temos de nos perguntar:
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Quão bons somos nós em Timor a aprendermos com os nossos erros e os nossos resultados?
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Com que frequência continuamos no mesmo caminho político, apesar dos resultados desfavoráveis ou social ou economicamente pouco rentáveis?
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Como podemos mover as pessoas para além de simplesmente votarem em símbolos, slogans e bandeiras?
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Como podemos envolver as pessoas num desenvolvimento político real e informado?
A política e o seu interesse público
Deixem-me recuar um pouco. A primeira qualidade de um político é a integridade. A integridade requer independência de decisão. Independência de decisão rejeita dogmatismo. O pensamento dogmático envolve agarrar-se a coisas que mostraram não funcionar como se não tivéssemos outras alternativas. O dogmatismo envolve nunca nos envolvermos em reflexão ou crítica do que fizemos e do que poderíamos fazer de forma diferente, apesar dos nossos fracassos ou problemas passados. O dogmatismo envolve simplesmente repetir slogans e motherhood statements na esperança de que um dia possamos estar corretos, em algum momento. Mas, como se diz, até um relógio avariado pode estar correto duas vezes por dia.
Para que a regra da maioria seja boa, deve ter algum fundamento legítimo na justiça e no interesse público. Deve basear-se na deliberação e escolha informadas e fundamentadas do povo. O interesse público e uma verdadeira democracia não é simplesmente votar numa bandeira ou slogan partidário. O interesse público exige que as pessoas sejam informadas e possam fazer uma escolha informada entre programas distintos e desenvolvidos.
Quando a política se torna simplesmente sobre partidos, empregos, posições, carros e portáteis, os parlamentos podem transformar-se num circo impróprio e auto interessado. Não preciso de recordar a ninguém o circo que vimos há alguns anos no parlamento nacional. Também vimos deputados, que antes, quando trabalhavam para uma ONG, sempre falavam de boa governação e ética, mas, uma vez que ganham o poder, parecem tornar-se apenas apaixonados pelo seu novo carro? O resultado é que as pessoas ficam cada vez mais insatisfeitas e consternadas. Tornam-se cínicos de todos os partidos políticos e das suas promessas. E, como vimos em muitos lugares do mundo, quando os eleitores desconfiam e desprezam os seus representantes, a própria democracia está em risco.
A vontade geral e a escolha política
O ideal republicano democrático baseia-se na noção da “vontade geral”. Encontramos referências a esta vontade geral na nossa estrutura constitucional. O objetivo de uma boa democracia é criar um mecanismo que permita aos povos alcançar um ambiente onde os povos se possam unir para expressar a vontade geral e construir um futuro comum.
Isto em geral não pode simplesmente ser uma fidelidade a um partido, um símbolo, uma bandeira ou uma retórica sobre quem ganhou a nossa independência, ou quem é ou não um fundador da nação. Este tipo de conversa não constitui a base para o pensamento e a tomada de decisões fundamentadas e informadas. As pessoas devem expressar a sua vontade em relação aos problemas da política e da vida pública, e não apenas escolher entre várias pessoas; ou, pior, entre várias organizações irresponsáveis.
Simplesmente ganhar o poder e preocupar-se com a política mais tarde não é do interesse a longo prazo da nação. Também não mostra a qualidade necessária de integridade. A verdadeira expressão do geral só ocorrerá quando as pessoas recebem informações e podem discutir de forma informada como os seus representantes pretendem atingir os objetivos necessários para o desenvolvimento da nação.
Objetivos políticos como os estabelecidos no Plano Estratégico de Desenvolvimento (PED) exigem políticas e caminhos para os alcançar. Pode haver caminhos diferentes para atingir um determinado objetivo no PED. Compete aos partidos políticos definir e defender estes diferentes caminhos. Os partidos políticos devem fazer mais do que simplesmente discutir sobre o passado ou simplesmente afirmar, por exemplo, que são a favor da soberania nacional sobre os nossos recursos petrolíferos e de gás. O que as pessoas exigem é que a informação e as opções sejam formuladas pelos partidos políticos para que possam fazer uma escolha informada sobre questões que afetam as suas vidas e o seu futuro. Se os partidos políticos não podem fazer isto, para que é que os temos?
Mudança geracional e escolha de políticas
Esta pode ser a questão decisiva do futuro da nossa nação. Nós, a geração de 75, a geração de líderes históricos da resistência e da independência, temos simplesmente de dizer que estamos a envelhecer. A mudança geracional requer mais do que novos líderes de partidos políticos. Para construir o nosso futuro comum, necessitamos de mecanismos eficazes para que as pessoas se expressem sobre questões de política e de vida pública.
Temos muitos jovens inteligentes a passar pelas fileiras. Mas nem eles sabem tudo. Apesar da sua formação, devem permanecer humildes. Muitos dos jovens formados poderiam constituir a base de um serviço público tecnocrático formado. Mas, para serem eficazes, têm de perceber que as respostas de que necessitamos estão para além dos seus livros de texto universitários e que a inovação deve ser sempre combinada com uma política pormenorizada e uma expressão fundamentada e informada do geral sobre as questões políticas relevantes.
Qualquer serviço público tecnocrático não deve ser limitado pelos interesses do seu partido e pelos seus benefícios pessoais. Devem sempre, em primeiro lugar, dever a sua fidelidade à nação e ao povo. Não devem ser dogmáticos. Devem estar sempre abertos a novas soluções, e não apenas guiadas pelo que lhes foi dito que podem funcionar e que, até agora, aqui ou noutro lugar, não funcionaram.
Partidos, representação e descentralização
As palavras “democracia” e “república” obrigam-nos a examinar determinados problemas.
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Como dar às pessoas a oportunidade de expressarem efetivamente o seu juízo sobre os principais problemas da vida pública?
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Quando se colocam perguntas às pessoas, qual a melhor forma de as considerar sem voltar ao ego e ao partidário apaixonado, desprovido de qualquer razão e mérito?
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Como pode a deliberação do público ser posta em prática, interpretada e refinada por aqueles que foram incumbidos dessa tarefa?
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Até que possamos ir além da chamada entre quadros partidários, até que possamos desenvolver uma discussão política informada e o consentimento, será realmente possível falar de uma república democrática legítima?
As soluções não serão facilmente encontradas. A filósofa francesa Simone Weil escreveu que o simples facto de existirem partidos políticos não era, por si só, motivo suficiente para os preservar. Agora tenho a certeza de que alguns ou a maioria de vós acharão isto chocante, mas para Simone Weil, o primeiro passo foi a abolição de todos os partidos políticos!
Hoje, temos de nos perguntar se se trata de um passo tão recuado? Algumas pessoas poderão fazer esta pergunta com a intenção séria de abolir efetivamente os partidos políticos. Outros poderão questionar-se a si próprios apenas como uma forma de começar a pensar em como podemos reformar e melhorar o nosso sistema atual. Outros podem pedir simplesmente para fazer uma chamada de atenção aos nossos atuais políticos. Devem, para começar, refletir seria e honestamente sobre o que conseguiram para as pessoas nos últimos 21 anos. Devem ponderar se podem orgulhar-se do seu historial ou se sabem que podem fazer mais pelo povo e pela nação.
Até agora, o nosso Parlamento foi eleito de acordo com as listas partidárias. Por conseguinte, as pessoas não têm uma palavra a dizer sobre quem os representa no Parlamento. Essa decisão cabe àqueles que, em última análise, controlam o poder nos partidos políticos. Nem todos os países elegem os seus parlamentos desta forma. Não há nada na nossa Constituição que diga que os deputados devem ser eleitos de acordo com as listas partidárias. Esta é uma prática que herdamos dos outros. Mas será a melhor opção para o nosso pequeno país descentralizado?
Por exemplo, noutros países, os deputados são eleitos com base em lugares que representam diretamente, uma área ou região, e não são distribuídos de acordo com o que os partidos decidem. Assim, por exemplo, se esse sistema existisse em Timor, poderíamos ter deputados que representassem diferentes postos do país. Temos 65 postos que, se fossem formados com base no nosso Parlamento, dar-nos-iam o mesmo número de deputados que temos hoje. Um deputado que representa um posto criaria uma ligação direta a estes lugares. Os eleitores esperariam que os seus representantes atuassem tanto no interesse nacional como no interesse do posto em causa. Também daria às pessoas de fora do sistema partidário a oportunidade de se tornarem independentes no Parlamento. Os deputados eleitos de acordo com as listas partidárias representam realmente os interesses do povo, ou representam apenas os interesses dos seus partidos?
Esta pode ser uma forma de criarmos laços mais fortes entre o povo e os seus representantes e darmos maior sentido a uma expressão informada da vontade geral. Pode também, ao mesmo tempo, reforçar o processo de descentralização e de administração local e proporcionar aos deputados formas de comunicar e de ser responsáveis perante as pessoas que os elegem de formas que simplesmente não existem agora.
Democracia deliberativa
As experiências asiáticas com a democracia deliberativa podem também guiar-nos no nosso pensamento sobre o futuro. A democracia deliberativa pode ser descrita como uma abordagem que enfatiza o papel da deliberação entre iguais, que incentiva a reflexão, e que resulta em decisões vinculativas e legítimas. As decisões devem basear-se no “poder da razão”, em vez de paixões, dogmatismo, poder político, económico ou militar. Uma democracia deliberativa é aquela em que a “deliberação” – isto é, a discussão, a razão racional e a reflexão mútua – é parte integrante do funcionamento global de um sistema democrático.
Historicamente, as constituições têm-se preocupado fundamentalmente em restringir o poder político dos órgãos de soberania. A democracia liberal sempre se preocupou principalmente em garantir a liberdade de um indivíduo perante interferências por parte do Governo, das instituições culturais, sociais e de outras instituições. A democracia deliberativa procura encontrar formas de estabelecer e expandir o poder da discussão pública e do poder no processo democrático de uma aldeia, um suco, um município e uma nação. A democracia deliberativa pode dar-nos formas de construir a liberdade, não de, mas com um propósito, um moris diak, para alcançar resultados em benefício do povo. Os defensores da democracia deliberativa argumentam que pode melhorar e aprofundar a democracia participativa.
A democracia deliberativa pode melhorar a forma atual de democracia participativa, na medida em que pode desenvolver o raciocínio público, incentivar uma deliberação aprofundada e cultivar o espírito público. A democracia deliberativa vai além do simples envolvimento dos cidadãos em eleições periódicas disputadas entre partidos políticos. Muitos países da Ásia têm longas tradições de deliberação pública, algumas das quais continuam hoje. Hoje, em algumas regiões da China, as aldeias discutem e deliberam sobre os seus orçamentos anuais e as suas prioridades em resultado da introdução de métodos de democracia deliberativa. O nosso modelo de descentralização proposto contém as sementes e poderia ser utilizado para criar modelos eficazes de democracia deliberativa.
A democracia deliberativa é muitas vezes considerada como uma alternativa à política partidária porque os membros do partido são vistos por vezes, como tendo falta de vontade ou capacidade para iniciar uma deliberação pública significativa, uma vez que estão vinculados pela disciplina partidária, pela agenda e pela política do partido. Por outro lado, o sucesso da democracia deliberativa em partes da Ásia aproximou a tomada de decisões dos povos e criou situações em que as escolhas informadas são feitas sem restrições desnecessárias dos interesses instalados.
Concorrência e legalidade na aplicação da lei
Falei sobre como a concorrência funciona entre os partidos políticos do nosso país. E pedi às pessoas que pensem quais são os benefícios reais que ganhamos com esta situação. Os eleitores e os membros dos partidos políticos têm de se perguntar o que é que estes partidos realmente contribuem para a vida do povo num sentido real e substancial? Todos temos de encarar as falhas do sistema até à data e pensar abertamente em como podemos melhorar a situação. Mas, para concluir hoje, gostaria de falar de outro domínio em que a concorrência ocorre e está a ter efeitos prejudiciais para o Estado de direito e para a nossa democracia. Já falei disto antes, mas chegou a altura de encararmos esta questão de uma vez por todas.
A militarização das nossas autoridades civis e o envolvimento ilegal de alguns militares nos assuntos civis estão a ocorrer com demasiada frequência. Ao mesmo tempo, o que estamos a ver é que diferentes autoridades envolvidas na aplicação da lei e na inteligência parecem estar a competir entre si de uma forma pouco saudável. A pergunta que se coloca em primeiro lugar é a de saber por que razão, num país tão pequeno, precisamos de tantas organizações diferentes de aplicação da lei, de segurança e de informações? Por que razão, por exemplo, nós e os doadores estamos a gastar grandes quantidades de dinheiro na construção de dois laboratórios forenses distintos e concorrentes da polícia? Um para a PNTL e outro para a PCIC. Temos os recursos humanos e financeiros para que ambos funcionem em seu pleno potencial, ou será apenas mais um exemplo de consolidação de poder?
As organizações de aplicação da lei, segurança e inteligência parecem estar a tentar competir entre si pelo controlo ou domínio. Porque é que vemos cada vez mais a PCIC, o SNI, os diferentes braços da PNTL e até mesmo a polícia militar a operar de forma que excede os seus poderes legais? Temos cada vez mais casos de tribunais, felizmente, impedindo estas autoridades de empreenderem ações ilegais. Mas mesmo quando os Tribunais assinalam a ilegalidade, há alguns elementos civis que procuram continuar independentemente disso. E, por vezes, recrutaram elementos militares para os ajudar. Deixem-me ser claro: os militares não têm lugar na aplicação da lei civil. O papel dos componentes da inteligência militar é avaliar as ameaças à soberania nacional – não ajudar as autoridades civis na realização de operações ilegais contra os cidadãos. Além disso, quando os tribunais decidiram que certas ações são ilegais, não cabe a elementos da aplicação da lei ou da inteligência ignorar mais ou menos essas decisões e tentar continuar independentemente disso. A aplicação da lei deve agir dentro dos limites da lei e a sua organização deve ser racionalizada para o fazer cumprir.
Não me parece que esteja a exagerar quando digo que a proliferação da concorrência entre as instituições de aplicação da lei, a segurança e as instituições de informação está simplesmente fora de controlo. Tal como os casos destas instituições que atuam fora da lei. Estaremos à beira de uma situação em que constataremos que elementos destas instituições criam centros de detenção e investigação secretos e ilegais onde as pessoas são interrogadas e detidas fora do controlo dos tribunais? As pessoas detidas no decurso da lei já enfrentam dificuldades na obtenção de justiça. Qual é o futuro de um país que permite que as instituições de segurança operem totalmente fora da lei? Esta é uma receita perigosa para conflitos e abuso generalizado de poder e tem de parar. Os políticos não devem fechar os olhos a estas questões nem tentar usar tais práticas para seu próprio benefício político.
Relativamente a isto, temos de nos perguntar porque é que a polícia de Timor tem sempre armas letais? Quantas vezes vimos polícias ou outros a ser atacados, feridos ou mortos por pessoas, incluindo criminosos com armas? Por outro lado, quantas vezes vimos as pessoas feridas ou mortas pela polícia? Um modelo racionalizado de aplicação da lei centrado numa PNTL profissional deve, em primeiro lugar, concentrar-se nas relações e no policiamento comunitário. Além disso, uma PNTL racionalizada e profissional deve estar acima da política partidária. Os agentes da polícia não devem jurar fidelidade aos partidos políticos. A sua única lealdade é para com o povo e a nação. A polícia, as investigações e as acusações não devem ser motivadas ou impulsionadas politicamente. Todas as instituições, a PNTL, os militares e o ministério público no seu conjunto, não podem ser instrumentos de controlo ou influência política. Todas estas questões que mencionei são exemplos de poder que está a ser exercido para além dos seus limites legais, fora do controlo de um Estado democrático e de uma sociedade. Não foi exatamente contra isto que lutamos na nossa luta pela independência? Qualquer novo governo deve enfrentar estas tendências de frente.
Uma pequena nação e uma democracia jovem não podem permitir tantas agências que competem pelo poder e ao fazê-lo desrespeitar a lei. Se nós, como nação, levarmos a democracia, a legalidade e os direitos humanos de forma séria, deve haver uma reforma urgente do funcionamento destas autoridades.
Os próximos cinco anos são o tempo de “tudo ou nada” para a nossa nação. A forma como o próximo Parlamento e o Governo atua lançarão as bases para a sobrevivência e o desenvolvimento da nossa nação e da nossa sociedade. Enfrentamos decisões difíceis na construção da nossa nação e da nossa democracia para o futuro. Se tomarmos as decisões erradas, arriscamo-nos a perder tudo.
Espero que os partidos políticos partam para as próximas eleições de forma madura. Espero que se envolvam em debates sobre políticas e não se repitam apenas slogans cansados. Espero que forneçam às pessoas informações e escolhas reais e não apenas debates intermináveis sobre personalidades, bandeiras, fundadores e afins. O povo merece mais que isso.
Vou deixar estas questões aqui por hoje. Como disse, a minha intenção não era apresentar um programa político, mas sim plantar algumas sementes para discussão e consideração pelo Parlamento, pelo Governo e pelo povo, como um catalisador para encararmos o nosso futuro em conjunto. Penso que está na altura de, para a nossa nação, avaliar seriamente o que ganhámos nos últimos 21 anos, o que conseguimos e onde falhámos. Os próximos cinco anos são cruciais para o futuro da nossa nação. À medida que Maun Boot, eu e outros avançamos, temos de pensar e discutir de formas inovadoras sobre o nosso futuro comum, para que a próxima geração possa continuar a construir uma república democrática digna desse nome.